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Verstehen

Texto de Guto Melo

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 “A razão é a camada superficial da consciência”
Sônia Guedes Leal, A Poética da Agoridade.

Uma boca proferindo discursos desencaixados com a articulação dos lábios, em vários idiomas (russo, alemão, italiano…), associando-se a jabutis e a esferas com cabelos para compor uma vídeo-instalação que apresenta a comunicação da incomunicabilidade. Em Verstehen, Juliana Notari cria um universo que pode parecer estranho e sem nexo à primeira vista. Porém, um olhar atento aos signos postos ali possibilita arriscar alguns passos na dança de leituras que a obra exala.

O primeiro ponto que chama a atenção, talvez por ser mais nítido, é o movimento dos lábios em desencontro com o pronunciamento dos discursos de vários filósofos e escritores em idiomas diferentes do português e pouco falados no restante do mundo, o que obviamente dificulta, ou mesmo impossibilita, o entendimento do espectador. Os discursos são variados, sendo compostos por trechos de Ulisses, clássico de James Joyce; pela fala de Jean-Paul Sartre explicando por que ele não aceitou o prêmio Nobel em 1964; e por aí vai.

Do choque entre o que não se diz e o que é dito, surge o incômodo de não chegar, de não alcançar satisfação. Isso de algum modo causa mal-estar, pois nos retira a potência que acreditamos possuir. As esferas com cabelos, estáticas, e os jabutis locomovendo-se com lentidão ou adormecidos, atolados na areia, podem ser vistos como uma metáfora desse trânsito repleto de barreiras. Por outro lado, é possível ignorar as couraças do hermetismo quando se tira o foco da boca e se percebe o conjunto, mergulhando na abertura que o exercício da interpretação proporciona.

E, dentro desse conjunto, os jabutis têm uma conotação especial por serem organismos vivos movendo-se dentro da obra. Os jabutis se tocam muito, fazem sexo com constância, e isso sugere proximidade. Também vivem entocados naquela carcaça, o que sugere recolhimento e até distanciamento. No entanto, esse invólucro natural é uma proteção para eles. O abrir e fechar dos jabutis diferem dos da boca por estarem perfeitamente articulados com o tipo de comunicação que se estabelece entre esses animais, na qual não há o uso da voz. A circularidade orgânica dos bichos parece mais bem-resolvida que a nossa. Será que um jabuti dos trópicos teria dificuldade de entender um jabuti da Rússia?

Junto a eles, as esferas com cabelos utilizadas também em Assinalações, um trabalho anterior da artista, completam a videoinstalação. Elas estão ali para reforçar a estética viril que o trabalho possui com a introdução de mais um elemento orgânico, descontrolado, em que o corte não mata o crescimento. Além disso, as esferas podem ser vistas como um contraponto ao trânsito entre todos esses elementos, já que materializa a imobilidade — estado de espírito inicial do espectador da obra.

Verstehen significa compreensão em alemão e apresenta sonoridade alheia, modificada a cada vez que se pronuncia o termo. Novamente a ideia de trânsito aparece nas marchas, passagens e trajetos fonéticos extraídos também de um abrir e fechar de lábios que se articulam na direção oposta da pronúncia original. E, nesse sentido, dizer a palavra é também pisar numa série de chãos possíveis.

 

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