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Redentorno

Texto de Kleber Mendonça Filho

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“ Às vezes somos tesouras, às vezes somos alicates”

‘A comédia é um homem em apuros’, teria definido Jerry Lewis, um pensamento repleto de ricos significados e que bate bem com uma boa parte do que nos estimula como observadores das tensões de vida. A capacidade do artista, não importa o terreno onde atua, de enxergar com saudável espanto esse estado de ‘apuros’ é matéria prima essencial da expressão, um sentido de te(n)são desejado(a) que tanto nos aflige como nos estimula. Tal elemento alimenta claramente a obra de Juliana Notari, artista que incorpora o estado de apuros no qual todos estão e, ao que parece, ela mesma.

Juliana Notari não parece ter nenhuma dificuldade de expor seu ponto de vista de dentro do seu corpo e do alto da sua cabeça. Isso dá ao seu trabalho um caráter pessoal palpável e destacado num universo artístico geral (sob os rótulos variados ‘cinema’, ‘literatura’, ‘música’, ‘artes plásticas’) marcado pelas tendências usurpadas, pelo golpe de vista almejado como uma expressividade de efeito cênico puro e simples.

Uma visão revisão atenta do que ela tem criado nos leva a uma obra que, para além da experiência estética em si, há, acima de tudo, um estado de espírito a ser compartilhado. Estados de espírito têm a peculiaridade de serem únicos, frutos do mundo particular de um indivíduo, e de como ele relaciona-se com espaços.

Em primeiro lugar, a negociação dessa liberdade de oferecer ao mundo o que sente e do que ela se ressente como artista e ser humano chama a atenção. Isso numa era onde oferecer ao mundo o que anônimos sentem tornou-se marca de excessos no nosso presente midiatizado e, em grande parte, esquecível.

A sua manipulação e resignificação de elementos pessoais sugere a quebra de um cordão de isolamento que naturalmente separa o observador do artista.

O quarto e a cama de um relacionamento amoroso falido, por exemplo, pode nos mostrar uma direção de arte aplicada às tintas borradas dos sentimentos. Ironicamente, a cor predominante é o branco, com destaque para um elemento artificial de sexualidade que sugere uma dublagem do ideal masculino desejado, à beira de um cinismo feminista.

O corpo como interface física e emotiva do mundo parece ter naquele quarto uma extensão orgânica. Juliana também nos dá objetos que nós humanizamos na nossa intimidade, ora com coração, ora com desejo sexual, raiva ou simples desprezo. Às vezes somos tesouras, às vezes somos alicates. Em outras situações, apenas observamos quem eles são, e o que são capazes de fazer com a nossa pele.

Uma citação discreta ao que talvez seja o filme Trouble Everyday (1999), de Claire Denis, em forma de anotação rabiscada, talvez revele afinidades com o elemento ‘pele’ como revestimento amoroso sempre a um passo de ser rasgado, ou de virar documento para quem somos, o que fazemos, o que comemos e quando.

O conceito de uma família que ceia unida numa extensão videografada do mundo inteiro parece sugerir forte raiz tradicional, com uma generosidade real para com o mundo exterior. Na verdade, a obra de Juliana Notari traz uma quantidade saudável de contradições, indicação clara de como sentimentos humanos fluem com enorme desenvoltura.

Essa generosidade com o mundo, essa capacidade de estabelecer um estado de espírito surge com particular clareza numa obra recente, Redentorno. Essa obra sugere a representação de um impasse.

A noção de expectativa de vida (mecanizada) já fazia parte da cultura pop via publicidade com os ‘Duracell Bunnies’ dos anos 80, coelhinhos que mostravam enorme longevidade a partir de pilhas alcalinas, vencendo a concorrência da energia (artificial) para a vida.

Em Redentorno, o conceito é levado além. Um cachorro mecânico, coleira presa num poste, movimenta-se circularmente dentro de um beco sem saída redondo. Ele não vai a lugar algum, sensação adequada para um objeto mecanizado que simula formas orgânicas e cujo design tenta nos roubar de alguma compaixão para com o infeliz simulacro de cãozinho.

A associação do observador é clara e perturbadora. Em algum momento da vida, e dos nossos apuros, sejam eles graciosos ou não, cedemos à mecânica social e nos vemos presos sem ter para onde ir. É o compartilhamento de uma atmosfera, reprocessada e orgânica.

 

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