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Apresentação do livro Dez dedos – Juliana Notari

Texto de Clarissa Diniz

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Ao longo de uma década, Juliana Notari vem abrindo caminho por entre cacos — dentre vários, também os de vidro. Realizada quatro vezes nesse período, a performance Symbebekos (2002) insiste sobre a obra da artista, evidenciando seu contínuo processo de transformação. Além de testemunhas da tensa ação que estrutura a performance — o percurso através de um corredor de vidros —, a trajetória de Symbebekos nos faz cúmplices também das inquietações e amadurecimentos que circunscrevem o trabalho de Notari: perceber as mutações da obra ao longo dos últimos anos é, de algum modo, partilhá-la. Essa é também a intenção deste livro, que reúne a produção da artista, contextualizando seus primeiros dez anos de trabalho. Por entre as páginas que seguem, é possível fazer parte de uma vida que se mostra e se recria constantemente.

Compreendendo que a arte é território fértil não para a sublimação, mas para a ativação dos desejos, Juliana Notari tem criado um corpo de trabalhos que encaram suas singularidades, transitando por entre a biografia, o confessional, a catarse ou práticas relacionais. Com ênfases e modos de operação diversos, traumas, desejos, fantasias e medos são recolocados em performances, vídeos, instalações e objetos, instaurando relações entre subjetividades (notadamente, pelos vínculos estabelecidos entre artista-obra-público) que, por sua vez, configuram o eixo central da obra da artista: “O que me impulsiona a realizar meus trabalhos é a possibilidade de dar forma às minhas pulsões e desejos que, a partir do momento que se lançam ao mundo, me possibilitam uma aproximação comigo mesma e com o outro”.

Assim é que, para Juliana Notari, a arte está intimamente implicada com um modo de existência, donde a presença de duas forças fundamentais em seu trabalho: linguagem e corpo. Se — sobretudo no princípio de suas investigações — as potências e, em especial, as falibilidades da linguagem enquanto campo de comunicação preocupavam a artista (como em Verstehen ou Inneresteren, comentadas no texto de Guto Melo), no decorrer dos anos soma-se a esse primeiro protagonismo da linguagem a inalienável força do corpo e das experiências sensíveis que, como tal, não se conformam ao modelo comunicacional. É nesse sentido que a ideia de linguagem é recolocada em sua obra, alargando as ossaturas conceituais dos trabalhos iniciais (evidenciadas na análise de Carlos Lopes): menos interessada em apontar o que haveria de incompletude na existência, a obra de Notari passa a propor situações de intensificação do existir, como assinalado no texto de Maria do Carmo Nino. É o caso, por exemplo, de Aslude ou Redentorno, cuja circularidade, ao passo que aponta para uma sensação de esgotamento e repetição passiva, são sobremaneira experiências ativadoras de sensibilidades singulares.

Nesse processo de transformações, ressalta-se a permanência de uma plasticidade exuberante, que marca parte das experimentações da obra de Juliana Notari. Desde a série Assinalações — em torno da qual a artista levou adiante experimentos diversos com fios de cabelo —, uma materialidade pungente se coloca por entre animais, terra, fogo, alimentos, vidros, sangue; informando também uma gestualidade de caráter orgânico, posta nos desenhos que recobrem os bonecos de Inneresteren ou nos traços que anunciam seu cotidiano na série Diário de Bandeja (cap. 2). Tal sensibilidade plástica se faz, mais adiante, numa concretude estreitamente vinculada ao corpo, atravessada por pesos (Aslude), forças (Dra. Diva) e tensões (Symbebekos) — índices da potência da criação para Notari, para quem a dimensão libertária da arte pode passar pela exploração dos limites do corpo.

Tangenciando variadas questões da subjetividade, da alteridade e das dinâmicas sociais da contemporaneidade — especialmente aquelas de ordem psicanalítica, como evidenciam o texto Canibalizar-se, o depoimento da artista sobre o surgimento de Symbebekos ou, em referência ao debate acerca do feminismo, a reflexão de Ricardo Resende acerca da série Spalt-me —, o trabalho de Juliana Notari, ao pautar-se pela busca de uma relação de aproximação entre subjetividades, vivencia modos diversos de cumplicidade. Longe da versão harmoniosa da convivência entre diferenças, trata-se, antes, de uma obra que explora os conflitos e as perversidades das relações, extraindo, desse terreno de tensões, sua potência de invenção.

Também cúmplice das ambiguidades atiçadas no enfrentamento dos desconfortos da subjetividade, este livro percorre os principais interesses e preocupações da produção de Juliana Notari, que, contextualizados por textos escritos à época em que surgiram os trabalhos analisados, estão aqui postos em perspectiva, vistos a partir de um conjunto de dez anos de transformações. Dessa forma, o livro extrapola a obra da artista para colocar-se também como um registro de um espaço-tempo específico: além de uma ansiada universalidade, é possível, complementarmente, entrever pensamentos e experiências partilhados por artistas e críticos contemporâneos (muitos, conterrâneos) a Juliana Notari. Pois — como cúmplice — o percurso da artista é também parte da história de um campo da arte produzida a partir do nordeste brasileiro, região que na primeira década do século XXI atravessou um evidente processo de adensamento e metamorfose. Cumplicidade esta que, com toda a sua complexidade, aqui igualmente se apresenta.

 

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