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Spalt-me

Texto de Ricardo Resende

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Spalt-me é uma plotagem em escala urbana que lembra o interior cavernoso de uma vagina. Ou ainda, se abstrairmos a forma, nos faz lembrar as manchas de Rorschach usadas em testes de avaliação psicológica, comumente denominados como Método de autoexpressão, desenvolvido pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. Mas a imagem — originária da performance Dra. Diva, na qual a artista rasgava literalmente uma parede e depois a fazia sangrar ao forçar a introdução de um espéculo vaginal — é, em verdade, referente ao corpo feminino, algo como a vista interna de um enorme útero.

O trabalho também nos remete a uma pintura muito conhecida da arte moderna, a tela A Origem do Mundo (1866), de Gustave Courbet (1819–1877), onde se vê parte do corpo de uma mulher que tem o sexo recoberto por uma densa camada de pelos pubianos. Sendo um pequeno óleo sobre tela, de 46 x 55 cm, a pintura apresenta um plano fechado sobre o sexo e o ventre de uma mulher nua, deitada sobre uma cama com as coxas afastadas, entre as quais expõe em plenitude sua vagina, sem qualquer viés — mesmo que sutil — de sensualidade. Para a época, foi uma pintura escandalosa e que continua a causar estranhamento para alguns, estando publicamente exibida no Museu D’Orsay, em Paris, desde 1995. Mesmo o psicanalista Jacques Lacan, que foi um dos seus proprietários, tinha dificuldade em deixá-la à mostra, diante da sua explicitude.

Juliana Notari, por sua vez, ousa ainda mais ao trazer para a rua, impressa sobre a fachada de um prédio, uma imagem impactante como aquela do pintor francês. Uma imagem que de certo modo é abstratizante. É e não é ao mesmo tempo. Pode ser uma visão do órgão genital feminino superexposto ou a imagem abstrata da mancha de Rorschach, confundindo o observador em um primeiro momento. A artista joga a imagem na cidade, em tamanho descomunal. Como se quisesse nos lembrar da origem do mundo ao escancarar aos nossos olhos uma imagem com tanta profundidade, embora plana na parede de um edifício qualquer nas superfícies da cidade.

O sentido em trazer esta imagem, capaz de causar estranhamento e impacto visual, e possivelmente moral, pode permitir várias interpretações como visto. Mas na sociedade atual, cínica, que transforma a mulher em um objeto mercantilizado e dá a seu corpo um aspecto artificial, onde a sexualidade está banalizada, e até mesmo o útero pode ser alugado para gerar vidas encomendadas, a vida se torna frívola e tudo fica por um triz entre a ética humana e a do capital. Tem ainda um outro sentido: ao trazer esta imagem, em princípio abstrata, de figuração sugestiva, como dito, para a paisagem na escala urbana, Juliana Notari parece chamar a atenção, ou mesmo de forma “agressiva” querer jogar na cara dos transeuntes uma indagação sobre essa origem do ser humano. Mais precisamente, nos coloca de frente para a imagem uterina desmistificada, a origem do mundo que se dá no corpo da mulher.

Essa “caverna” é uma visão escura do mistério da reprodução da vida.

 

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