Navigation Menu+

Um tenso, porém, delicado e cuidadoso, caminhar.

Texto de Clarissa Diniz

 

Symbebekos, uma performance baseada na ação de caminhar, é em si mesma equivalente ao percurso da obra de Juliana Notari. Realizada pela primeira vez em 2002, a ação agora alcança a sua quinta – e última – versão, desta vez realizada no vão do Cais do Sertão, no Recife, marcando os vinte anos do trabalho (2002-2022)1 e avultando a trajetória de mais de duas décadas de produção da artista.

Concebida no contexto de uma sequência de experiências de violência urbana fruto da desigualdade social do Brasil, foi após mais um assalto com o uso de cacos de vidro (corriqueiramente utilizados como arma na capital pernambucana naquele início de século) que Juliana imaginou Symbebekos, performance que brotou da necessidade de encarar o medo que então a tomava: “vivia um momento de muita tensão na minha relação com a cidade, já beirava a síndrome do pânico. O pavor de ser assaltada me fazia viver num estado de estresse eterno, e o medo de ter medo era pior ainda”2.

Na mais recente versão da performance, a memória de um único caco ameaçadoramente pressionado contra o pescoço multiplicou-se em 2500 garrafas de vidro quebradas e transmutadas em pequenos volumes pontiagudos que, reunidos, formam um caminho cortante; uma operação hiperbólica até hoje recorrente na obra de Notari, mas que naqueles anos fazia-se especialmente presente em Assinalações (2001), Janta (2001) e Verstehen (2002), trabalhos forjados pela intensidade do acúmulo de fios de cabelo recolhidos ao longo de anos.

Convertidos em multidão, os cacos de vidro de Symbebekos não se mantiveram como dispositivos de violência. Ao contrário, atuam justamente na reversão das agências implicadas naquelas memórias de coerção. Enquanto, como vítima do assalto, Notari foi o “objeto” da intervenção do vidro em seu corpo, ao redirecionar as quantidades e as formas dos cacos, na performance é a artista quem se torna o sujeito da ação. Produz, assim, a possibilidade de inverter agressão e defesa, opressão e liberdade, convertendo sua anterior experiência de violência num experimento de autocuidado.

Nessa mesma direção, percebemos que, a despeito de um olhar de relance fazer o andar por entre cacos de vidro parecer um exercício de autoflagelação, quando a testemunhamos de perto, a performance revela-se distante de qualquer dimensão masoquista. Abrindo uma trilha por entre o monte de vidro com seus pés, o corpo da artista não está se lançando ao perigo do corte, senão evitando-o. À paralisia do assalto, Symbebekos responde com movimento. Um tenso, porém, delicado e cuidadoso, caminhar.

Em suas quatro versões anteriores, a performance aconteceu retilineamente, distribuindo seus cacos como um corredor que levava de um ponto a outro, deslocamento no curso do qual a artista, vestida de preto, se via ladeada pelo seu público. Assim espacializada, Symbebekos remetia a liturgias e tradições performativas tão distintas quanto um cortejo, uma missa, uma marcha ou um desfile, inspirando uma inquietante solenidade.

Agora, após sua maioridade, Symbebekospiral engendra uma transfiguração tão topológica quanto simbólica em sua proposição inicial, deixando de arranjar-se na forma de uma linha para tornar-se círculo. Desta vez trajando branco, Notari entra em cena ao cruzar um espesso anel de cacos de vidro calçando botas e, depois de alcançar o vazio central da roda, já descalça, se põe a abrir espaço de passagem por entre o lancinante círculo. 

Não mais ladeada, senão circundada pelo público como num terreiro, a artista perfaz um movimento espiralar por dentro dos cacos, entrando no caminho de vidro por um ponto e saindo por outro que, apesar de situar-se ao lado da entrada, não é com ela coincidente. Ao fazê-lo, quando chega ao fim de seu percurso, deixa um rastro espiralar. Desse modo, temos que o spiral que habita o título da obra não advém de uma forma escultórica, mas realiza-se como ação formativa.

Apesar da tentação de vocabular e historiográfica de filiar Symbebekospiral a Spiral Jetty (1970) de Robert Smithson – obra de terraplanagem em espiral construída à beira de um lago de sal em Utah, nos Estados Unidos, logo tornada marco da assim chamada land art –, a obra de Notari filia-se não à tradição das formas estáveis ou autônomas, mas àquela da formatividade: aspecto inerente à própria performatividade. Se a origem deste termo remonta ao conceito linguístico do performativo (enunciados surgidos da coincidência entre palavra e ato), temos que, do ponto de vista das formas, a formatividade é a intensidade mesma de dar forma a. A formação em contínuo devir.

Distanciando-se dos paradigmas formais da Spiral Jetty, ao gerar uma espiral desde dentro de um círculo à medida em que por ele caminha, Symbebekospiral aproxima-se não tanto da obra de Smithson, mas sobremaneira da proposição Caminhando (1963) de Lygia Clark. Nesta, a artista propõe que os “participantes” produzam, com papel e cola, uma fita de Moebius que possa acolher a passagem de uma tesoura, experimentando o voluptuoso desdobramento daquela topologia espiralada que não obedece a delimitações como dentro e fora, anverso e reverso. 

Tal como acontece na obra de Juliana Notari, cuja descoincidência dos pontos de entrada e saída é o que faz espiralar o círculo de cacos de vidro, a proposição de Clark tem sua formatividade moebiana desarticulada quando já não se torna mais possível à tesoura desviar do ponto inicial de corte: “no fim, o caminho é tão estreito que não pode mais ser aberto. É o fim do atalho”, avisava Lygia num texto de 1964, indicando a dimensão efêmera e contingencial da “experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” forjada por Caminhando, esgotada precisamente por ser uma ação e não uma forma autônoma, pretensamente transcendente ao tempo-espaço.3

Intitulado em gerúndio, Caminhando é um gesto cuja imanência se manifestava, portanto, na ideia de ato. “Existe apenas um tipo de duração: o ato. O ato é que produz o Caminhando. Nada existe e nada depois”4, afirmava contundentemente Clark, sublinhando a radical formatividade de sua obra que, como sabemos, terminaria por conduzi-la a processos relacionais com aproximações terapêuticas.

A imanência do ato, interesse vertebral na prática performativa, marca uma obra anterior à Symbebekospiral. Intitulada Redentorno (2008), trata-se de uma videoinstalação que registra um incessante movimento: um cachorro de brinquedo girando em torno de um eixo central (ao qual se vê atado por uma coleira) até a exaustão da carga de sua bateria, ambíguo fim que igualmente o emancipa daquele eterno retorno. Enquanto Redentorno explorava a intensidade de uma ação sem tangentes, vivenciada de forma tragicamente imanente, Symbebekospiral reage àquela anterior pulsão de morte ao transformar o giro de um círculo num percurso espiralar.

Como última versão da performance, Symbebekospiral retorna ao gesto que a deu origem à obra sem, entretanto, repeti-lo. Não há “mesmidade da experiência vivida”5, mas movimento de transformação que, intencionando concluir um trabalho, ao mesmo tempo o refunda, a partir dele produzindo vetores e curvas que indicam caminhos por vir na trajetória desta instigante artista.


1 Anteriormente à sua realização no Cais do Sertão (Recife, 2022), a performance foi realizada na Galeria Baobá (Fundaj, Recife, 2002), na Galeria Fayga Ostrower (Funarte, Brasília, 2004), na Galeria Vermelho (Mostra Verbo, São Paulo, 2006) e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Festival de Performance Arte Brasil, Rio de Janeiro, 2011)
2 Trecho de Symbebekos, texto de Juliana Notari incluído no livro Dez Dedos – Juliana Notari (Recife: J. Nascimento Notari, 2012).
3 Caminhando (1964), texto de Lygia Clark. Disponível em: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/6275/caminhando.
4 Idem.
5 Leda Maria Martins em Performances do tempo espiralar (Rio de Janeiro: Cobogó, 2021), p. 206.