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Canibalizar-se

Texto de Clarissa Diniz

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Juliana Notari deixou seu diário na portaria do meu prédio como se fosse um punhado de letras qualquer. Recebi-o como faria a um jornal; folheei as primeiras anotações com certa indiferença. Nas páginas seguintes, titubeei. Envergonhada, senti-me obrigada a encarar sua intimidade. A cada dia lido, mais testemunha me tornava. Ela me fizera cúmplice de sua dor. Cúmplice impotente que, não tendo partilhado dos dias passados, sentia-se intimada a responsabilizar-se pelos vindouros. Juliana desejara revelar-se e, ao fazê-lo, paradoxalmente arriscava-se tanto quanto me colocava em perigo. E assim dar-se de bandeja começou a parecer-me menos um cristão comungar-se que um pagão canibalizar-se.

Ao ofertar suas intimidades em bandejas de luto, Juliana nos impulsiona a dela servirmo-nos e, então, antropofagicamente, passamos a possuir suas mazelas. Dessa forma, sua série Diário de Bandeja apresenta-se – apesar de facilmente adaptável aos enquadramentos autobiográficos e relacionais da produção de arte contemporânea – como mais um ato sutilmente perverso de sua obra. Desde cedo afeita a situações de tensão e, em certo sentido, penitência, outra vez Juliana nos entrega seus flagelos. Desta vez, assumidamente seus.

Eu não vou carregar esta cruz assinala o papel catártico de sua recente produção. De cunho degenerativo, suas obras relocam suas idiossincrasias: transformam lembranças em relíquias, presente em passado, parte em todo, vivência em vigília. Notari assalta sua infância, seu cotidiano, sua imaginação e, em sua ação desveladora – metaforizada no trabalho Ferida da Bienal – faz ver as chagas escondidas sob o gélido branco que cobre parte de seus trabalhos numa possível tentativa de estetizar suas angústias e torná-las sedutoras e atraentes ao olhar alheio.

Tal inclinação libidinosa é testemunha das pulsões de vida que, parece-me, impulsionam a artista em seus movimentos antropófagos. Apesar da destruição de sua alcova (e aqui a alcova é metáfora para sujeito), é a energia vital – o pênis ereto – que sobressai em meio à dor. Superando a martirização, existe em Juliana Notari certa glorificação dos processos degenerativos – provavelmente como aposta na continuidade e na transformação. Ainda que, por exemplo, apresente sua natureza gorda como razão de vigília e, consequentemente, desassossego, a artista insiste no culto à gula em sua vídeo-performance, e assim transforma seu sofrimento (morte) em prazer (vida) para aqueles que a devoram: antropofagia. De algum modo, paira sobre sua catarse a idéia de que, simbolicamente ceiando juntos*, estaremos, ao partilhá-la, dispersando sua morte. Ela não quer carregar sua cruz sozinha.

E assim Notari filia-se a um pequeno grupo de artistas – como Louise Bourgeois – cuja obra refere-se menos à arte que à natureza humana. A força de seus trabalhos advém de seu apelo existencial e, nesse sentido, o caráter autobiográfico de sua produção é menos fator estético que condição originária. Como em Bourgeois, seu diário não é opção artística, mas exigência egóica que agora Juliana arrisca transpor ao campo da arte. Como toda tradução, a transposição efetuada pela artista instaura ruídos e incompreensões linguísticas que não estão de bandeja entregues. O mistério inato às suas obras – quase sempre pouco narrativas – corrói a possibilidade do estabelecimento de um contorno único para seus conflitos. Como em Esqueci meu tamanco no quintal, cada perna caminha numa direção, e o sentido do percurso por vir agora é dado também por nós que com ela, a partir de então, compartilhamos confidências.

 


*Todo ato antropofágico/canibal, mesmo quando real, é simbólico. Daí a não-necessidade da presença da artista que, assim, ressalta o caráter psicanalítico de sua obra.