Da intrusão disponível
Texto de Clarissa Diniz
Alguma intrusão esteve sempre no centro do trabalho de Juliana Notari. Como em performances onde a artista ateia fogo a cabelos alheios, arromba paredes para infiltrá-las espéculos (instrumentos de exame ginecológico), impõe a brinquedos giratórios que permaneçam rodando continuamente até que se quebrem ou, ainda, voluntariosamente abre caminho por entre um corredor de cacos de vidro. A política de corpos que singularmente estabelece o caráter intrusivo de tais trabalhos – realizados nos últimos 14 anos – elabora a imagem de um gesto forte da arte diante do mundo, uma visão empoderadora, que passa também pela violência e pelo autoritarismo.
Recentemente, contudo, o gesto intrusivo de sua obra tem adquirido outros contornos. Se os atos de força de trabalhos anteriores sobremaneira ativavam a relação entre violência e vulnerabilidade, obras recentes agregam a essa bipolaridade uma nova camada. Trata-se de uma espécie de disponibilidade: desejo e abertura ao outro que pode adquirir ares de uma servidão voluntária capaz de reconfigurar relações aparentemente exploratórias.
É o que acontece na invasão a um mausoléu abandonado para a limpeza do mesmo; ou da castração de um búfalo, cujos testículos são posteriormente comidos pela artista, que também se deixa arrastar pelo animal.
Na primeira situação, Soledad, espontaneamente Juliana assume o papel da faxineira do limo acumulado sobre mortes abandonadas à própria sorte, e cuja história é por ela desconhecida; na segunda, Mimoso, dispõe-se a incorporar a virilidade que fora arrancada do animal, num ato – mais canibal que piedoso – de perpetuação de sua energia libidinal.
Os dois trabalhos enviesam uma possível “zona de conforto” da produção anterior da artista. Sorterrada, não estando mais no centro dominador dos terrenos de sua obra – donde o gesto provocativamente autoritário de outrora – mas, contrariamente, dispondo-se a fazer da entrada em território alheio o ponto de partida para seu trabalho, Juliana sublinha dimensões talvez menos evidentes da experiência política e de alteridade de sua produção. Afinal, Soledad e Mimoso são também intrusivos na relação que estabelecem com a artista, cujos gestos recentes encontram força no ato de se abrir à intrusão de vidas que, ao lhe escapar, passam também a interpelá-la.