Symbebekos
Texto de Juliana Notari
Era uma tarde ensolarada, dessas típicas do Recife, com sol a pino. Lá estava ela, parada no sinal de trânsito (dentro do seu Fiat Uno azul-céu, velho — o que não era de todo mau naquela cidade perigosa, onde não era bom chamar a atenção dos ladrões). Bela, jovem, branquinha, com feições que deixavam transparecer um ar de classe média. Nem mesmo o calor insuportável daquele dia fez com que decidisse abrir os vidros do carro, que não tinha ar-condicionado. Apesar de estar em seu invólucro com rodas, não se sentia totalmente protegida, e suas feições tensas exalavam o cheiro do medo. Naqueles tempos, Recife tinha sido considerada a quarta pior cidade do mundo para se viver (embora riquíssima culturalmente, em plena efervescência do movimento manguebeat) e, consequentemente, era muito violenta. A pobre moça já acumulava em seu currículo uma série de seis assaltos, todos realizados com armas de fogo, sempre carregadas por jovens marginalizados que ficavam à espreita nos sinais de trânsito esperando a moça do Fiat azul parar. O calor aumentava torrencialmente, e ela pensou: se for assaltada de novo, será com revólver, e terei que abrir o vidro de todo jeito. Que entre o ar! Ar com mão e vidro! Foi só ela abrir uns quatro dedinhos do vidro que uma mão adentrou o carro e encostou um caco de vidro sobre o seu pescoço. Ela podia sentir a temperatura do vidro seguida da voz que ordenava: “Passa tudo, passa a bolsa, carteira, tudo, senão eu te furo!”. E lá se foi a sétima carteira. Furar, não furou. Apenas riscou.
Pensar no que move a produção de um trabalho artístico é um exercício bastante complexo e, como qualquer boa sessão de análise, pode ser doloroso também. A minha experiência como artista me faz pensar assim, pois o que me impulsiona a realizar meus trabalhos é a possibilidade de dar forma às minhas pulsões e desejos, que, a partir do momento em que são lançadas ao mundo, me possibilitam uma aproximação comigo mesma e com o outro. Poder dar forma a tais pulsões é a possibilidade de criar significações que, no embate da obra (desde seu processo de criação) com o mundo, geram forças antes inexistentes e que são capazes de gerar acessos a lugares antes inatingíveis. É assim que a arte atua mutuamente sobre mim e sobre o mundo, criando novas possibilidades por meio do que nem sempre tem lugar no mundo das possibilidades dadas a priori: as pulsões e os desejos de um indivíduo.
Obviamente que a moça do Fiat azul sou eu, e a passagem por esta experiência foi a fagulha que fez surgir a performance Symbebekos. Certamente há outros motivos, não posso saber com exatidão. Era o ano de 2001, e eu estava cursando a graduação de Artes Plásticas na UFPE. Particularmente, vivia um momento de muita tensão na minha relação com a cidade, já beirava a síndrome do pânico. O pavor de ser assaltada me fazia viver num estado de estresse eterno, e o medo de ter medo era pior ainda: como bicho humano, acredito que o medo tem cheiro. Exalando o seu cheiro, eu passava a ser uma presa fácil na cidade.
Naquele período, precisava apresentar um trabalho prático para uma disciplina do curso e, como sempre, deixei para fazer na última hora. Até hoje, a pressão é um dos meus melhores motores produtivos, pois fui criada com “excesso” de liberdade — estudei em colégios alternativos, onde a liberdade do aluno era fundamental, e os meus pais sempre foram mais liberais do que os dos meus amigos. Tinha inveja dos pais mais autoritários. De algum modo, eu tinha alguma consciência de que toda aquela liberdade era prejudicial para mim, que, diferentemente do meu irmão, não tinha uma autodisciplina introjetada. Eu me sentia desregrada e pedia para os meus pais me colocarem em um colégio católico, onde eu poderia encontrar mais disciplina. Nunca fui atendida e continuava sem limites (e, por isso, tendo problemas com o desempenho escolar). Nesse sentido, identifico-me com Louise Bourgeois quando ela diz: “Gosto de lugares apertados, pois só assim tenho consciência dos meus limites”.
Falar sobre os sentimentos de liberdade e de limite é fundamental para a compreensão deste trabalho, pois vejo nele um exercício na busca do limite através do corpo.
Dentro da minha produção, considero Symbebekos um dos trabalhos mais potentes e também representativo, visto que condensa o leitmotiv que me move – independentemente dos meios utilizados – ,que é essencialmente a busca do que é inerente à condição humana.
Acredito que grande parte da sua força advém do medo, sentimento este que está presente desde a gênese do trabalho e que permeia todo o seu processo, da construção do caminho de cacos de vidro ao próprio caminhar por entre eles, a parte visível da performance.
O medo talvez seja o mais antigo e mais visceral sentimento do homem. Sem ele, a espécie humana teria sucumbido. Acompanhando o homem desde os primórdios, ele nos ajudou no processo civilizatório não só no sentido do progresso como também no da destruição.
Ao nos depararmos com uma situação que nos provoca medo, naturalmente tendemos a fugir, mas essa fuga, ao contrário do que possa parecer, não é uma atitude passiva, mas, sim, ativa, em que recorremos às nossas potencialidades para superar uma situação de perigo e assim nos preservarmos. Mas, em um sentido geral, tal comportamento pode ter diferentes desdobramentos. Se por um lado evita que soframos alguns males colocando-nos a salvo, por outro nos impede de vivenciar eventos conflituosos que poderiam nos levar a situações que ampliariam nosso repertório experimental.
Considero que a arte tem como uma das principais proposições a possibilidade de ativar o campo do conflito sem o qual, como nos diz Mário Pedrosa, o “exercício experimental da liberdade” não seria possível.
Sendo assim, acredito que a pulsão de morte integra, também como força germinativa, o campo das intensidades que são ativadas por este trabalho. Penso que, diferentemente do que foi instituído pela psicanálise tradicional quanto à ideia de sublimação, a arte não seja um meio de apaziguamento dos desejos e, tampouco, da pulsão de morte. Em seu potencial de invenção, a arte consegue ressignificar tais forças sem almejar amansá-las.
Nesse sentido, não sublimo o meu medo (de assalto) neste trabalho, pois, muito ao contrário, eu procuro intensificá-lo ao me arriscar. Que o meu medo passe ou não é o que menos interessa, pois não vejo este trabalho (e a arte em geral) como uma função terapêutica, tampouco tenho a intenção de me mutilar ou de sacrificar meu sangue em nome da arte — como já há algumas décadas vêm fazendo alguns artistas filiados à body art. Aqui se trata justamente do oposto: livrar-me pacientemente do perigo, afastando cuidadosamente a ameaça da dor. O foco está no risco e na insistência em não ceder a ele (o que equivaleria a desviar do caminho), desafiando aquilo que se coloca como impedimento, criando possibilidades onde elas pareciam não existir.
Por fim, no momento de intitular o trabalho — processo que na maioria das vezes me é difícil, pois tenho medo de restringir o campo da interpretação da obra e por isso invento ou escolho palavras pouco familiares ao contexto brasileiro —, fui presenteada pelo acaso.
Ao escolher a palavra symbebekos para o título do trabalho, não tinha a menor ideia do seu significado, pois o que me chamou a atenção foi a sua boa sonoridade. Depois, soube que se tratava de um conceito aristotélico que significa “noção de causa acidental”. Noção esta que é a essência desta performance: o puro acaso.